segunda-feira, 8 de novembro de 2010

"Quem não morre fica velho"
João Ubaldo Ribeiro comemora 70 anos com o relançamento de Viva o Povo Brasileiro, diz que não tem medo da morte - mas da proximidade dela -, reza todos os dias e conta como conseguiu superar o vício do álcool
Membro da Academia Brasileira de Letras há quase duas décadas e vencedor do Prêmio Camões em 2008, a maior premiação dedicada a autores de língua portuguesa, João Ubaldo Ribeiro está muito distante da imagem solene transmitida por muitos escritores da sua categoria. Apesar do prestígio que conquistou no meio literário, o baiano não abandonou o modo simples de levar a vida.

Todos os dias, sai de casa logo ao amanhecer, para comprar pão e jornal. Depois, fica enfurnado em sua biblioteca particular, no andar superior de seu duplex, no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro – no passado o apartamento pertenceu a Caetano Veloso. Durante os fins de semana, o autor de clássicos como Viva o Povo Brasileiro (1984) e A Casa dos Budas Ditosos (1999) pode ser visto dividindo uma mesa de botequim com amigos, bebericando seu guaraná Antarctica diet.

De bermuda, chinelos e cigarros queimando entre os dedos, ele recebeu Gente para mais de duas horas de entrevista. Dono de uma voz grave, pensamento reticente e, algumas vezes, enigmático, João Ubaldo lembrou do convívio com o cineasta Glauber Rocha, revelou a mania de ler dicionários e contou ainda que deu um autógrafo para Jorge Amado quando publicou seu primeiro conto, em 1959.

Algum projeto para comemorar seus 70 anos, em janeiro de 2011?
Estou preparando uma nova edição de Viva o Povo Brasileiro, espero que a definitiva. Mas, por enquanto, não tenho nenhuma obra nova programada para as editoras. Fora isso, estou brincando com três ou quatro histórias esparsas. Eu nem sei direito o que estou escrevendo, até porque eu não estou nem escrevendo no papel. Só na cabeça.

Qual é seu ritmo para escrever atualmente?
Gasto mais tempo escrevendo hoje em dia. É uma coisa curiosa. Onde está o tempo que a gente economizou não tendo mais que passar coisas a limpo? A verdade é que continuamos tão sem tempo quanto antes. Mas com o computador, consigo gastar mais tempo apenas escrevendo. É paradoxal porque ele torna fácil demais mexer no texto. Hoje, um personagem morre e, no dia seguinte, você muda de ideia. Mas chega o fim do dia e você acha que o sujeito tinha de ter morrido, então, você vai lá e mexe no texto de novo.

‘‘Desde pequeno, adoro ler dicionário. Eu não existo sem o Houaiss, o Aurélio e o Sacconi, todos instalados no computador’’

Tem uma rotina?
Acordo às cinco horas da manhã. Tomo banho, subo para a biblioteca e fico esperando clarear. Quando o sol aparece, vou à padaria e pego o jornal na banca, que fica na mesma quadra. No escuro eu não saio porque uma vez tentaram me assaltar e fiquei traumatizado. Eu estava perto da portaria do prédio quando um sujeito do outro lado da rua começou a correr na minha direção. Chamei o porteiro, entrei em casa e, ao invés de ficar quieto, resolvi reviver algum cangaceiro sergipano que talvez exista em mim. Peguei uma faca dessas de mesa, que não corta nada, e desci de novo. Fiz isso porque me senti desmoralizado. Mas não deu em nada (risos).
Tem alguma mania?
Desde pequeno, adoro ler dicionário. Eu não existo sem o Houaiss, o Aurélio e o Sacconi, todos instalados no computador. Fico ali na máquina escrevendo meus negócios e, daqui a pouco, encasqueto com uma palavra qualquer. Resolvo olhar os sinônimos do Houaiss e encontro uma outra palavra tão atraente, que abro o verbete sobre ela. Olho a definição e digo: “Ih, acho que já vi isso uma vez no Aurélio”. Aí, abro o Aurélio. E assim vai... É uma maluquice que pode durar um dia inteiro, uma perdição.

É ruim envelhecer?
Não. Afinal de contas, quem não morre fica velho. Depois de certa idade, esse negócio de mortalidade fica complicado. Antes dos 40, a morte é uma coisa que só acontece com os outros. Depois você começa a ver mortes de contemporâneos. Quando chega aos 70, você nem brinca muito com esse assunto porque dá depressão.

Você tem medo da morte?
Da morte como fato, não. Mas duas coisas devem ser terríveis... Primeiro é o sujeito sentir a proximidade da morte, seja por falta de ar ou por um mal-estar qualquer. Outra é receber a notícia de que está condenado. Falar em morte com coroa é como falar de corda em casa de enforcado.

Como encara a religião?
Sigo mais ou menos os rituais com os quais eu fui criado, que são os católicos. Simplesmente herdei essas vias de comunicação. Rezo todos os dias.

A aposentadoria chega para um escritor?
Se alguém chegasse para mim e dissesse que eu não poderia escrever mais, seria insuportável. Agora, já que ninguém me proíbe, não ando com muita pressa. Nem penso nisso.

Você é metódico?
Na hora que eu sento para escrever, as ideias vêm caoticamente. (William) Faulkner teria dito certa vez que, para escrever um romance, basta criar um personagem e sair correndo atrás dele, anotando tudo que ele faz. Faço mais ou menos isso.

Você mora pertinho da praia. Costuma andar pelo calçadão?
Eu costumo ter projeto de andar na praia (risos)...

Pensa em parar de fumar?
Várias vezes. Sabe aquela velha piada, de que é fácil falar que parou de fumar? Foi feita pra mim. Já parei de fumar várias vezes. Mas estou diminuindo e fumando cigarro fraco, o que não adianta nada (risos).

Você está sem beber há oito anos. Considera-se curado?
É uma história comprida... Alcoólatra usa qualquer desculpa para voltar a beber e conheço todas as manhas. Tive problemas com o álcool, frequentei o Alcoólicos Anônimos e estudei o assunto. Apesar de ser cristão de formação, não era devoto de Nossa Senhora, nem rezava Ave-Maria. Mas aconteceram fenômenos. Ganhei uma medalha de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e, a partir daí, passei a rezar de noite um Pai-Nosso e uma Ave-Maria. Nessa época, estava realmente ruim, tinha sido internado com uma pancreatite. Um dos sintomas eram engulhos secos, pela manhã. Estava piorando e não conseguia me conter.

Um dia, sentado na beira da cama, na hora de dormir, rezei a Ave-Maria e disse: “Se eu não tiver engulho amanhã eu paro de beber”. No dia seguinte, não tive engulho nenhum. Desci para comprar jornal e fui direto para a banca, sem parar no boteco. Voltei com o jornal e não bebi. Durante toda a manhã, fiquei sem beber também. Aí, nos dias seguintes, eu continuei na linha. Todo sábado e domingo vou encontrar meus amigos no botequim e fico apenas no guaraná Antarctica diet. É o que eu bebo hoje.

Quando você percebeu que o vício tinha virado um problema?
Já era um problema pra mim, eu apenas não tinha consciência. Uma pessoa que bebe todo dia é alcoólatra, mas se você disser isso, ela fica indignada. E eu, que nunca bati na minha mulher, nunca fugi de casa e nunca faltei ao trabalho, pensava na época: “Como eu posso ser alcoólatra? Eu só bebo todo dia”.

Você tem quatro filhos. Teria mais um?
Se fosse o caso de a minha mulher (a psicanalista Berenice Batella Ribeiro) ter querido, eu teria tido mais. Mas nunca projetei, nunca foi uma frustração. Comecei a sentir vontade de ter netos.

Como é você como pai? É coruja?
Não sou paizão. Quer dizer, eu acho que não sou mau pai, me dou bem com meus filhos todos, mas também não acho que sou um grande pai. Acho que nunca fui paizão, de levar os filhos ao Maracanã. Às vezes, eu tenho uma certa... (pensativo) Não é frustração, mas é como se fosse. Uma vontade de ter sido diferente.

Seu pai foi um homem muito sério e austero. Como era a relação entre vocês?
Meu pai era de lascar mesmo. Era um homem durão, principalmente comigo, o filho mais velho. Ele queria que eu aprendesse a falar francês só com as aulas do colégio, sem professor particular. E comprava LPs de cantores como Maurice Chevalier e Jean Sablon para eu treinar o idioma e tirar as letras. Durante as férias, eu tinha que copiar os sermões do Padre Antônio Vieira.

Qual foi o primeiro livro que você leu?
 Uma das casas em que morei, em Aracaju, era um casarão velho com um porão entupido de livros. Eram tantos espalhados pela casa que parecia que a gente morava numa estante. E eu tinha trânsito livre para mexer neles. Na época, eu nem sabia ler direito, mas ficava curioso, principalmente com as edições ilustradas. Quando meu pai me levou para as primeiras aulas de leitura, aos seis anos, aprendi instantaneamente. Chegava em casa silabando e pegava os livros. Um deles foi Dom Quixote.

Você foi muito amigo de Glauber Rocha...
Estudamos na faculdade de direito. Lá tinha gente interessada em música, filosofia, oratória, o que deixava o ambiente fervilhante. Nessa época, eu e Glauber andávamos muito juntos. Todas as tardes, nos reuníamos em frente à antiga livraria da Civilização Brasileira, no centro de Salvador. Era uma turma de escritores, jornalistas e fofoqueiros em geral, conhecida como intelectuais de porta de livraria (risos).

Jorge Amado o apadrinhou no início da carreira?
Quando foi publicado o primeiro conto de minha autoria, houve um lançamento na sede da Imprensa Oficial. O livro incluía contos de escritores famosos, entre eles o próprio Jorge Amado, e outros mais obscuros, como eu, que tinha 18 anos. Compareci à cerimônia, mas fiquei todo tímido, escondido perto da janela que dava para a praça. Jorge Amado me viu e foi em minha direção. Ele apertou minha mão, pegou um livro, abriu no meu conto e perguntou: “Me dá um autógrafo?”. Fiquei tão nervoso que nem me lembro o que foi que escrevi.

Sobre o que você gostaria de escrever?
O livro que eu gostaria de escrever é o que aparecer na minha cabeça, o que se impuser.
“Falar em morte com coroa é como falar de corda em casa de enforcado”

FONTE\ISTOÉGENTE

Nenhum comentário:

Postar um comentário